Ivan Ângelo (Barbacena MG 1936). Romancista, contista, cronista, jornalista, professor e tradutor. Nascido em Barbacena, Ivan Ângelo muda-se ainda criança para Belo Horizonte, onde estuda e demonstra grande interesse pela literatura. Com o dinheiro de seu primeiro emprego, compra, aos 14 anos, a obra completa de Machado de Assis. Com 21, escreve contos para a revista mineira Complemento. Aos 23 anos, ganha o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, com o livro Duas Faces, publicado em parceria com Silviano Santiago, em 1961. Muda para São Paulo, em 1965, e passa a exercer a função de editor no Jornal da Tarde. Começa a trabalhar no projeto de um romance, que, por influxo da forte censura imposta pelo governo militar, é finalizado somente em 1975. Trata-se do elogiado A festa, com o qual recebe, no ano seguinte, o Prêmio Jabuti. Em 1979, publica um livro de contos intitulado A casa de vidro e, sete anos depois, lança A face horrível, volume que lhe valeu o prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte e que é composto por contos publicados em seu primeiro livro e de alguns inéditos. Em 1985, torna-se editor-chefe do Jornal da Tarde e publica uma nova obra somente em 1994, O Ladrão de Sonhos, seu primeiro livro infanto-juvenil. No ano seguinte, lança Amor?, romance ganhador do Prêmio Jabuti. Continua a dedicar-se à literatura infanto-juvenil, ao mesmo tempo que começa a ter suas crônicas publicadas em revistas semanais.
sábado, 7 de setembro de 2013
Texto "Pitangas", de Ivan Ângelo
Fui flagrado apanhando pitangas no bairro de Perdizes. Não
apenas comendo algumas, como pode acontecer com qualquer humano ou passarinho.
Com humanos, quando tocados por súbita tentação ou nostalgia; com passarinhos,
ao cuidarem da própria subsistência.
O nome justo e certo para o que eu estava fazendo é colhendo: eu
estava colhendo pitangas na Rua Itapicuru. Gordas pitangas, de cores variando
do vermelho ao roxo. Havia um disfarçado constrangimento na atenção com que eu
agia, não olhava para lado nenhum que não para as pontas dos galhos, com receio
de encontrar algum olhar de censura. Aquelas frutas pertenciam por direito aos
pássaros do bairro. Eles não tinham supermercados ou feiras para se abastecer,
os alimentos deles talvez tivessem escasseado durante a longa seca
recém-terminada. As chuvas trouxeram alívio para as pitangueiras, que, parece,
estavam se arrebentando de vontade de dar pitangas.
Havia duas ou três circunstâncias a meu favor. Uma delas: fui
menino de convivência com pitangueiras. Isso marca a gente, deixa uma carência
insolúvel quando se muda para apartamento numa metrópole. Ninguém liga para os
sem-pitangueira, é problema menor na cidade grande. Que eu soubesse, seria um
problema só meu e dos sabiás.
Outra circunstância a meu favor: a minha geleia de jabuticaba
estava no finzinho. Fiz eu mesmo essa geleia, com as frutas da safra passada
que escaparam da voracidade dos micos que saem da mata para catar comida no
nosso sítio. Melhor comerem as jabuticabas do que os ovos dos passarinhos. De
repente, achei uma ótima idéia fazer geleia de pitanga.
Ainda uma coisa a meu favor – e foi mais um detalhe que passou
pela minha cabeça no instante da minha estouvada decisão: quando saí do sítio
no feriado passado, minha pitangueira estava frutificando. Quando voltar no
próximo feriado, os micos não terão deixado nada para mim.
E, quase por último: feiras e mercados não vendem pitanga. É
fruta que recusa o comércio: não dura, amassa na manipulação, fere-se, fica
passada, mela, fermenta. Ainda assim, se houvesse pitangas à venda, eu não iria
disputá-las nas árvores com os bem-te-vis de Perdizes.
Minha última justificativa: não se encontra geleia de pitanga no
comércio de rotina. Pode haver, no Norte talvez, mas não encontrei por aqui. É
fácil achar de abacaxi, laranja, maçã, amora, damasco, frutas vermelhas,
morango, mirtilo, pêssego, até de jabuticaba já vi. Outra que sumiu foi a de
marmelo, mas essa minha sogra faz, no tempo da fruta. Não sei se há pitangas em
outros países, talvez não. É obrigação nossa, nacional, tornar disponível a geleia
de pitanga. Se fosse estrangeira, haveria, importada, como há a de blueberry.
Então, retomando o início: vinha eu de volta do supermercado,
com dois saquinhos de compras miúdas, caminhando atento às armadilhas das
calçadas, quando vi, no chão, o cenário perturbador: pitangas caídas, maduras,
vítimas de algum vento da manhã, muitas delas comidas pela metade, quantidade
de caroços limpos de frutinhas já degustadas... Olhei para o alto: afe! Pé
carregado, do verde ao roxo. Adiante, outro pé, igual! Ah, o que a chuva e o
sol haviam feito em quinze dias...
Foi automático: passei as compras de um saquinho do supermercado
ao outro e comecei a colheita. Dava-me o prazer de escolher as mais bonitas.
Quando ficaram mais difíceis, apanhei uma vassoura velha numa caçamba de
demolição ali perto e com ela verguei os galhos mais altos, engordando o
saquinho. Geleia rende pouco, e a fartura de matéria-prima me empolgava. Nesse
momento, passava de carro um ex-colega de jornal, que me reconheceu e parou. Eu
me senti ridículo. Já estava ensaiando explicações, longas talvez, que nos
cansariam os dois, quando ele cortou:
– Maravilha! Eu sempre quis fazer isso e nunca tive coragem!
Vocabulário:
Mirtilo: fruta pouco consumida. Riquíssima em nutrientes,
também comumente conhecida como blueberry e vendida na forma congelada.
Estouvada:
estabanada, imprudente, inconsequente, travessa.
Flagrado: descoberto,
surpreendido.
Insolúvel:
que não se pode resolver; sem solução.
Nostalgia:
melaconlia causada pelo afastamento da terra natal.
Vergar: dobrar,
arquear
Voracidade:
grande apetite ou vontade de comer; gula.
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
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