SIM
EM 1998 , Pierre
Bourdieu e Loïc Wacquant se perguntavam, em famoso libelo contra o imperialismo
cultural norte-americano: "Quando será publicado um livro intitulado
"O Brasil Racista", segundo o modelo da obra com o título
cientificamente inqualificável, "La France Raciste", de um sociólogo
mais atento às expectativas do campo jornalístico do que às complexidades da
realidade?" Igual desafio me coloca a Folha.
Eu respondo sim, somos
um país racista, se por racismo entendermos a disseminação no nosso cotidiano
de práticas de discriminação e de atitudes preconceituosas que atingem
prioritariamente os pardos, os mestiços e os pretos. Práticas que diminuem as
oportunidades dos negros de competir em condições de igualdade com pessoas mais
claras em quase todos os âmbitos da vida social que resultam em poder ou
riqueza.
Do mesmo modo, até recentemente era difícil achar uma
face negra na TV brasileira, em comerciais ou em programas de entretenimento ou
informação. Casos de violência policial contra negros eram comuns, como o era a
detenção de negros por suspeição ou a proibição de usarem o elevador social em
edifícios residenciais.
A presença de negros
nas universidades, como professores ou alunos, continua muito abaixo da
proporção de negros em nossa população. Para culminar, o descaso dos poderes
públicos para com os bairros periféricos ou as regiões mais pobres do país
torna ainda mais sofríveis os indicadores sociais relativos a pretos e pardos.
As desigualdades
raciais, ou seja, os diferenciais de renda, saúde, emprego, educação etc. entre
brancos, de um lado, e pretos e pardos, de outro, são gritantes e estão muito
bem documentadas. A julgar pelos resultados, portanto, somos racistas. E esse é
o modo como, no mundo atual, a sociologia e as instituições internacionais
definem o racismo. Não é pelas intenções, pelas doutrinas ou pela consciência
racial, mas pelo resultado de uma miríade de ações e omissões.
Como funciona o nosso "racismo como consequência"?
Desde os anos de 1940 o sabemos. Não classificamos por raça, mas por cor. Não
acreditamos em grupos de descendência chamados "raças". Os nossos
"grupos de cor" são abertos, podem se alterar de geração a geração,
podem conviver com certa mobilidade individual. São classes, no sentido weberiano.
Temos e cultivamos, portanto, classes de cor.
Mas, apesar de
fronteiras incertas para o olhar europeu, não há dúvidas de que pessoas e
famílias no Brasil pertencem a classes de cor bem determinadas, se fixarmos um
momento no tempo. "Cores" são tão socialmente construídas quanto as
"raças" e delas derivadas.
Discriminamos
abertamente as pessoas por classe de cor ou de renda, por local de nascimento
ou aparência física etc. Todas essas discriminações são feitas em muito boa
consciência porque não acreditamos em "raças".
Não creio, entretanto,
que nosso racismo seja pior, como querem alguns militantes, porque mais difícil
de ser combatido e revertido. Nos últimos dez anos, melhorou o respeito aos
direitos individuais, e a representação de demandas coletivas se revigorou no
Brasil. Reconhecemos o nosso racismo. Isso levou a uma sensível mudança de
atitude, políticas novas estão sendo testadas.
Como explicar de outro
modo a implantação de ações afirmativas ou programas de inclusão social em
tantas universidades públicas; a contratação de artistas e jornalistas negros
pelos meios de comunicação; a criminalização da discriminação; a diminuição das
arbitrariedades policiais contra os negros; o reconhecimento das terras
quilombolas etc.?
Tudo isso, porém, não
podia ser feito sem que um movimento social poderoso se organizasse em torno da
reivindicação de igualdade racial contando com a solidariedade internacional.
Um "imperialismo cultural" de consequências republicanas e
democráticas, eu diria.
Alguns temem que as
"classes de cor" se tornem "raças" pela força da lei, ou
seja, pelas políticas de inclusão social e racial. Espero que se dê algo bem
diferente: se eficientes, essas políticas podem dissolver o racismo que
subsiste sob as classes de cor.
ANTONIO SÉRGIO ALFREDO
GUIMARÃES, 57, Ph.D em sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison, é
professor titular do Departamento de Sociologia da USP. É autor, entre outras
obras, de "Racismo e Anti-Racismo no Brasil" e "Classes, Raças e
Democracia"