terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Sobre Noel Rosa...

Noel Rosa: o samba não tem tradução no idioma francês


O Brasil conta com inúmeros sambistas e compositores de talento. Raros, porém, são os que podem ser considerados gênios. Noel Rosa provavelmente encabeça a lista. 


Por Umberto Martins



O poeta da Vila, como ficou conhecido, nasceu no dia 11 de dezembro de 1910 e estaria completando 100 anos neste sábado. Mas viveu pouco, embora intensamente. Teve uma carreira artística meteórica e não sobreviveu à ação da tuberculose, que agiu em cumplicidade com a boemia. Morreu em 4 de maio de 1937, com apenas 26 anos. 

Origem do samba


Sua trajetória como artista foi ainda mais breve. Fez sua primeira gravação em 1929 e a última no ano da morte, 1937. Oito anos no total. Pouco tempo, certamente. Mas o suficiente para que produzisse centenas de obras primas, canções de rara beleza que continuam encantando os amantes da música e parecem desmentir o caráter efêmero da arte popular.

Noel viveu a áurea do samba. Foram os anos em que o gênero, ainda na infância, adquiriu sua forma moderna. Era cultuado, tocado, cantado e composto principalmente por negros que habitavam os morros cariocas. Ele foi um dos primeiros sambistas brancos, com a sorte de ser contemporâneo e parceiro de gigantes como Ismael Silva, Cartola, Vadico, Ary Barroso,Orestes Barbosa e Wilson Batista, entre outros.

Para o célebre compositor carioca, a beleza na música não se resume a uma equação de sons, mais ou menos complexa, nem se prende necessariamente à geografia. Em Feitio de oração, composto em parceria com Vadico, ele associa a origem do samba aos dramas da alma humana, traduzindo a concepção de que os sons musicais não passam de emanações poéticas dos sentimentos d´alma.

“O samba na realidade
Não vem do morro
Nem lá da cidade
E quem suportar uma paixão
Saberá que o samba então
Nasce do coração” 

Poesia e música


A identidade entre poesia e melodia é quase absoluta nas composições de Noel. As palavras, com sua fonética, se casam e se fundem com as notas musicais, costuradas por harmonias talentosas (algumas delas produzidas pelo paulista Oswaldo Gogliano, o Vadico) e compondo uma obra una de invulgar beleza.

Também se define o samba como uma crônica musical de uma época e de um povo. Trata-se de uma espécie de crônica que não se limita à descrição superficial de fatos e acontecimentos considerados relevantes ou dignos de registro, pois capta de uma forma mais profunda os sentimentos, dramas e sonhos humanos. Apesar de ser considerado um ritmo alegre, o samba quase sempre flerta com a tristeza, já que “é preciso um bocado de tristeza” para temperar o gênero, “senão não se faz um samba não”, como ensina Vinícius de Morais no Samba da benção. Tristeza, naturalmente, não era um sentimento estranho na vida atribulada de Noel. Foi o recheio de obras-primas como Último desejo ou Adeus, que compôs em parceria com Ismael Silva. 

Defesa da cultura nacional


O poeta da Vila Isabel conhecia como poucos o ser humano e o seu próprio tempo. Prezava a boemia, amava o samba e apostava na força, originalidade e beleza da cultura nacional e popular. No samba intitulado “Não tem tradução”, ele critica com bom humor e lucidez a influência bizarra das potências coloniais e neocoloniais nos hábitos cariocas, que se insinuava então através do cinema. Na música, Noel revela convicção na força do samba para combater tais tendências e defender a cultura genuinamente brasileira.

No início dos anos 1930, o cinema falado estava alterando os costumes populares, induzindo gente de origem humilde, mas “que tem a mania da exibição”, a cantar e dançar o fox-trot, ritmo em moda nos EUA, assim como a tentar se comunicar em inglês. Comportamento pouco sábio, que nos remete ao instinto de vira-lata cultivado pelas nossas classes dominantes, e que também foi ridicularizado por outros compositores (caso de Assis Valente, com a música Tem francesa no morro). Naquela altura a influência francesa tinha mais relevância que hoje. 

A crença na superioridade do samba e da cultura nacional sobre os novos hábitos é traduzida em vários versos: “Lá no morro, se eu fizer uma falseta a Risoleta desiste logo do francês e do inglês. A gíria que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou”. O samba, diz Noel, “não tem tradução no idioma francês”, pois “tudo aquilo que o malandro pronuncia com voz macia é brasileiro, já passou de português. Amor lá no morro é amor pra chuchu. As rimas do samba não são I love you. E este negócio de alô, alô boye alô Johnny, só pode ser conversa de telefone.. 

O centenário de Noel Rosa foi lembrado e comemorado em todo o Brasil ao longo deste ano. Merecidamente. O poeta da Vila Isabel não perdeu atualidade. É uma unanimidade, pelo menos entre quem não é ruim da cabeça nem doente do pé, ou seja, excluindo quem não gosta de samba. Sua obra, em certo sentido sem rival e objeto recorrente de regravações e novas interpretações, promete atravessar o século 21 ocupando um espaço privilegiado e único da memória popular. 




Fonte: http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=11&id_noticia=143486



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